Convidado
Manuela Carneiro da Cunha
Professora Emérita da University of Chicago
Professora Titular da Universidade de São Paulo
Perfil no website da University of Chicago
Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp (1976) e graduada em matemática pela Faculté des Sciences de Paris (1967). Fez pós-doutorado na Universidade de Cambridge. Foi professora da Unicamp e professora titular da USP, onde, após a aposentadoria, continua ativa. Foi Full Professor da Universidade de Chicago de 1994 a 2009, onde é professora emérita. Foi professora visitante na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na Universidade Pablo de Olavide, na Universidade de Chicago, no PPGAS do Museu Nacional (UFRJ). Foi titular da Cátedra ‘Savoir contre pauvretés’ no Collège de France em 2011-2012. É membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Terceiro Mundo; é membro do Observatório dos Direitos Humanos no Poder Judiciário no Conselho Nacional de Justiça desde 2020; foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia (1968-1988) e representante da comunidade científica no Conselho Deliberativo do CNPq, onde foi bolsista na Categoria A1. Foi membro do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) de 2018 a 2022. É membro da Comissão Arns de Direitos Humanos desde 2019. Faz parte do Conselho Curador do Museu da Língua Portuguesa. Recebeu várias distinções, entre as quais a Ordem do Mérito Científico na Classe Grã-cruz, a Légion d’honneur na França, a medalha Roquette -Pinto da Associação Brasileira de Antropologia e a medalha da Francofonia da Academia Francesa. Em 2018 recebeu o Prêmio de Excelência Gilberto Velho para Antropologia, conferido pela ANPOCS. Publicou 12 livros, 38 artigos em periódicos especializados e 32 capítulos de livros, além de ter organizado 4 livros. Sua atuação distribui-se pela etnologia, história e direitos dos índios, escravidão negra, etnicidade, conhecimentos tradicionais e teoria antropológica. Entre suas publicações constam os livros Cultura com apas; Negros, estrangeiros e Os mortos e os outros. Formou mais de 30 mestres e doutores em sua atuação na Unicamp, USP e na Universidade de Chicago.
A relevância do conhecimento indígena
Até os anos 1970, era comum pensar os povos indígenas como fadados ao desaparecimento pela marcha inelutável do progresso. Muita coisa mudou desde essa época, mas as noções de progresso e de integração ressurgem de tempos em tempos, sobretudo em governos de viés autoritário, para sustentar ações contra os povos indígenas. Sugerir que eles devam se parecer conosco expressa uma concepção assimilacionista. Durante praticamente toda a Colônia e todo o Império esse discurso foi usado, no Brasil, para escravizar os indígenas, para despossuí-los de terras, para forçá-los a abandonar a sua própria tradição e a sua própria visão do que era bom viver.
A sociedade hegemônica progrediu, ela passou a prezar e exaltar a diversidade e valorizar a diversidade. A Constituição de 88 acabou com uma coisa que datava já praticamente do começo do século 19, do primeiro Código Civil da República, que colocava os indígenas como tutelados, que não podiam expressar sua vontade diretamente. Dois artigos fundamentais – o 231 e o 232 – garantem direitos indígenas a suas terras, formas de organização e expressão, e que possam defender seus direitos, em juízo, de forma autônoma.
Essa conferência visa ressaltar o aporte essencial que os povos indígenas trouxeram para o debate ecológico, especialmente no final do século XX e no século XXI. Os povos indígenas são os grandes guardiões das florestas, e isso está sendo reconhecido não só internacionalmente, mas também, finalmente, no Brasil. Eles não apenas protegem as florestas, mas também produzem biodiversidade agrícola e conservam a biodiversidade das florestas, o que é muito importante. O projeto dos povos indígenas é um projeto em que a diversidade é um valor enorme. Há uma abertura muito grande para novidades, mas o princípio que comanda é o valor da diversidade. Os indígenas têm um conhecimento da floresta extraordinário.
Os modos de ver o mundo desses povos que foram estudados por antropólogos e que também estão sendo estudados por antropólogos indígenas, não consideram os humanos como os reis da natureza, eles acham que todos somos seres da floresta. Isso vale para árvores, bichos e até para espíritos, que também têm direitos. Essa floresta é fabricada e moldada também por esses outros seres. É uma visão completamente diferente da visão bíblica em que a humanidade reina sobre os outros seres do mundo, que estão a serviço, e foram colonizados por ela. Quase todos os povos indígenas respeitam o território. Há áreas em que é proibido caçar, porque consideram que é o lugar da reprodução dessas caças. Há toda uma ética e o comportamento é de respeito pelos direitos de outros seres. É de uma riqueza extraordinária saber viver na floresta. Claude Levi-Strauss, já 1948, chamou a atenção para o fato de que os povos indígenas têm um conhecimento extraordinário de recursos da floresta, e para a importância enorme desse conhecimento para nós todos.
Nosso país tem o privilégio de aliar uma imensa biodiversidade a uma igualmente imensa sociodiversidade; entender o passado e planejar o futuro com a presença e a parceria dos povos indígenas é um desafio contemporâneo fundamental.